Usuários de planos individuais sofrem com mudanças bruscas; a disputa não é apenas regulatória, mas de modelo de saúde
Cris Braga é paciente oncológica. Depois de diversas cirurgias e tratamentos ao longo de mais de uma década, ela precisa passar por avaliações periódicas de saúde por conta do risco de recidivas. Em setembro, com pedidos médicos para diversos exames em mãos, a radialista ligou para o laboratório usual e recebeu a informação de que seu plano de saúde havia descredenciado aquele serviço. Assustada, ligou para o hospital em que faz seu tratamento em busca de orientação. Para sua surpresa, descobriu que o serviço de diagnósticos do estabelecimento também havia sido descredenciado de seu plano.
Ela conta que não recebeu nenhum aviso do plano de que a rede credenciada mudaria. “Eu havia ido ao médico dias antes e fui atendida normalmente”, afirma. Com uma série de procedimentos invasivos realizados ao longo dos anos, ela precisa de atendimento especializado para conseguir fazer os exames. “Não é qualquer laboratório que consegue realizar os procedimentos. Tenho os braços esvaziados e isso dificulta muito o exame. Por isso, sempre faço nos mesmos lugares”, explica.
A mudança na rede de cobertura é prevista em lei. O plano tem a prerrogativa de trocar seus fornecedores, mas há regras para que isso aconteça. Como explica Emerson Nepomuceno, advogado especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva Advogados, a empresa deve avisar o cliente com 30 dias de antecedência. Além disso, não é permitido o simples descredenciamento da rede. É preciso que haja uma substituição. “Se essas condições não forem respeitadas, a mudança não pode acontecer”, explica.
Além da questão legal, a mudança na rede credenciada traz uma consequência mais nefasta para quem está em tratamento. “Esse tipo de quebra é algo terrível para o usuário, até pelo impacto ao longo da sua trajetória de cuidado. A questão da assistência, da quebra do vínculo com o profissional de confiança, tudo impacta o direito à saúde. No campo da saúde suplementar, até pela desregulamentação, há menos proteções”, afirma Matheus Falcão, analista do Programa de Saúde do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
Casos se avolumam
Situações como esta vêm se tornando públicas com frequência. Em dezembro de 2021, por exemplo, a operadora Amil surpreendeu os consumidores que tinham plano individual com a venda de toda a carteira de clientes dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná deste tipo para a empresa APS (Assistência Personalizada à Saúde), pertencente ao mesmo grupo econômico. Cerca de 340 mil planos foram atingidos. A APS tinha, antes da transferência, apenas 11 mil clientes.
A mudança não foi uma simples troca de CNPJ. Os clientes passaram, imediatamente, a relatar mudanças importantes na rede credenciada, com diminuição nas coberturas. As reclamações se avolumaram. O Idec foi uma das entidades que oficiou a ANS sobre os problemas. A pressão da sociedade deu resultado e, em abril de 2022, a ANS interveio na negociação e suspendeu o negócio “em razão da ausência de informações à reguladora sobre a suposta aquisição do controle societário da APS”.
“Era papel da Agência analisar o pedido para além dos aspectos formais e burocráticos e interpretar os sinais do mercado que, neste caso, eram preocupantes desde o início e foram denunciados pelo Idec mais de uma vez, desde 2021. Situações como essa não podem voltar a acontecer”, afirmou à época Ana Carolina Navarrete, advogada e coordenadora do programa de Saúde do Idec.
A empresária Alana Buaride passou por um problema semelhante ao de Cris Braga. Também cliente de um plano familiar da SulAmérica, recebeu em 16 de setembro um e-mail da empresa informando de que a partir do dia 19 – apenas três dias depois – teria acesso só a um laboratório para a realização de exames. Ela passou por tratamento de câncer na tireoide e faz acompanhamento há mais de sete anos. “Por conta das diferenças entre os laboratórios, preciso fazer exames sempre no mesmo laboratório”, diz.
Dificuldades para planos individuais
Todos os casos mencionados têm em comum o fato de envolverem planos individuais. Eles exemplificam uma questão que vem sendo apontada por especialistas como um problema. As grandes empresas do setor, cada vez mais concentrado nas mãos de poucos empresários, buscam livrar-se de planos de saúde individuais ou familiares.
Isso acontece porque esse tipo de contrato é fortemente regulado pela ANS. Os reajustes, por exemplo, são calculados pela agência, e não pelo mercado. Em oposição, os planos coletivos ou empresariais podem ser reajustados livremente, dentro do entendimento de que há margem para negociação entre os contratantes e as operadoras.
Em 2022, por exemplo, a ANS permitiu um aumento de 15,5% para os planos individuais, que representam 16% dos contratos no país. Já os reajustes de planos coletivos são mais difíceis de medir, justamente por falta da regulação. De acordo com a ANS, os planos empresariais com até 29 participantes tiveram, em 2022, um reajuste médio de 8,7%. Há registro de operadoras, no entanto, que chegaram a aumentar as mensalidades em mais de 100%.
Matheus Falcão, do Idec, afirma que há, de fato, um movimento das operadoras para dar preferência aos planos coletivos. “Existe uma tendência do mercado de sempre buscar as soluções que são desreguladas, ou seja, tentar ofertar para o consumidor aquele tipo de plano de saúde que tem menos proteção por parte do Estado”, explica. “Há essa tendência até de se criar pessoas jurídicas quase artificiais, pequenos CNPJs, por exemplo MEIs, para que se contrate um plano só nesse esquema de plano empresarial.”
Falcão explica que o consumidor desse plano pode sofrer reajustes muito elevados. “Alguns reajustes que chegam à casa dos dois dígitos e existe pouquíssima transparência no setor”, diz “O setor apresenta resultados econômicos muito bons, inclusive é um dos poucos que se mostrou lucrativo na pandemia.” Por isso, o Idec defende a regulamentação dos reajustes também para os planos coletivos.
Grandes conglomerados
Alana Buaride, que pretende entrar com um processo contra a sua operadora de saúde, diz enxergar esse tipo de mudança como uma tendência nos planos de saúde: restringir ao máximo o acesso a serviços que não façam parte do mesmo conglomerado econômico.
Essa é uma realidade do setor de saúde suplementar. Com cada vez menos concorrência, os consumidores acabam ficando sem opções. A própria SulAmérica está envolvida em uma gigantesca aquisição: a Rede D’Or conseguiu, no dia 12 de dezembro, o sinal verde do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), para a compra da SulAmérica. A Rede D’Or já era dona de 29,8% das ações da SulAmérica. O restante das ações foi arrematado por R$ 6,1 bilhões. O negócio havia sido fechado em junho.
Em entrevista ao site Outra Saúde, o sanitarista José Sestelo, autor do livro Planos de Saúde e Dominância Financeira, afirmou que esse tipo de aquisição é inédito no Brasil. “Vale registrar o ineditismo de ver uma seguradora tradicional, empresa do setor financeiro com atuação forte em seguro-saúde, passar a ser controlada por um grupo do setor de serviços na saúde. Os novos controladores revelam que o seu interesse pela compra está baseado na complementaridade de atuação dos dois grupos.”, afirma.
“Penso que pode ser também uma evidência do espalhamento do modus operandi da financeirização nas estratégias corporativas de empresas, cujo objetivo social declarado não se encaixa formalmente no setor financeiro, mas que, na prática, são geridos como se fossem empresas financeiras. É um binômio hospital/seguradora que vai ocupar um lugar de destaque em nosso sistema de saúde, especialmente no controle de leitos hospitalares”, diz Sestelo.
Modelo de cuidado e regulação
Essa tendência no setor da saúde impõe um desafio regulatório importante no país. Em uma área altamente oligopolizada, a concorrência diminui e há pouco que os consumidores possam fazer. “Isso tudo aponta para um quadro muito relevante de que é necessária uma mudança na regulação e no aprimoramento dos mecanismos de fiscalização. Quem é responsável por isso é sobretudo a Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas particularmente a diretoria colegiada da ANS, que é a instância política máxima dessa agência, que toma ou não essas decisões de regulamentar e proteger mais ou menos quem consome plano de saúde”, explica Matheus Falcão.
O Idec, como entidade que representa os direitos dos consumidores, vem construindo sugestões que possam contrabalancear o apetite das empresas pela maximização de seus lucros. “As nossas propostas começam na regulação dos reajustes dos planos coletivos. Hoje as operadoras de planos de saúde têm muita liberdade para definir e estabelecer reajustes muito elevados”, diz o advogado.
Mas esse é apenas o começo. Para ele, é preciso realizar uma discussão bastante aprofundada da relação entre público e privado, ou seja, do fluxo financeiro entre o estado e o setor de saúde suplementar. “É um setor que se beneficia muito da existência do Sistema Único de Saúde, também tem incentivos financeiros e até por isso deveria ter também uma responsabilidade socioeconômica muito maior com a sociedade. Isso passa não simplesmente com um compromisso das empresas, mas sobretudo por uma regulação maior por parte da ANS”, defende Falcão.
Outro lado
Procurada para se manifestar sobre as mudanças na cobertura dos planos de Cris Braga e Alana Buaride e sobre tendência de direcionar clientes para os planos coletivos, a SulAmérica se limitou a responder que “houve ajustes na rede referenciada laboratorial apenas” e que todas as alterações seguiram as normas da ANS.
Leia a nota na íntegra:
– A SulAmérica não realizou o descredenciamento de laboratórios de sua rede. O que houve recentemente foram alguns ajustes na rede de atendimento laboratorial (exames de análises clínicas e imagem) na cidade de São Paulo, unicamente para alguns planos Exato e individuais.
– A realização de exames em regime hospitalar, durante internação e atendimento em pronto-socorro, não sofreu nenhum ajuste.
– No caso das beneficiárias mencionadas, houve ajustes na rede referenciada laboratorial apenas. Os ajustes foram comunicados com antecedência, e informados onde poderiam realizar os seus exames laboratoriais dentro de qualificados prestadores da sua rede credenciada, em diversos endereços em SP.
– A SulAmérica segue todas as normas estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e tem atuado fortemente para que seus prestadores orientem adequadamente os(as) beneficiários(as), para que nenhum(a) deixe de ser atendido(a).
– Os canais de atendimento ao consumidor estão à postos para atender qualquer dúvida de nossos(as) beneficiários(as) pelo aplicativo, site, whatsapp ou telefone.